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O recente livro de André Tavares, Novela Bufa do Ufanismo em Concreto, junta-se a dois outros anteriormente publicados, Arquitectura Antituberculose: trocas e tráficos na construção terapêutica entre Portugal e Suíça e Os Fantasmas de Serralves, no quadro de uma extensa investigação desenvolvida a propósito do seu doutoramento, com o título O Tráfico do Moderno. Episódios da presença do betão armado nas estratégias do projecto dos arquitectos nos primeiros anos do século XX1. Este é um facto que importa referir, pois nele radica a razão para o nexo existente entre estas três publicações, ao qual retornaremos adiante.
     O primeiro livro deste conjunto, Arquitectura Antituberculose, a propósito das propostas arquitectónicas com as quais se procurou corresponder às necessidades emergentes da terapia para a praga que constituíu a tuberculose, leva-nos a um aspecto fulcral da questão moderna: o modo como processos construtivos de vanguarda e soluções renovadas para programas funcionais inovadores estão na origem de transformações do paradigma arquitectónico até aí vigente.
     Das práticas e descobertas do médico suíço Auguste Rollier (1874-1954) ao português Joaquim Ferreira Alves (1883-1944), com a sua Clínica Heliântica de Francelos – projecto de Oliveira Ferreira (1884-1957) –, este estudo, muito circunstanciado, propicia desde logo uma compreensão das questões que se colocavam no tratamento da doença, bem como do estado do conhecimento da sua terapia à época. Para além disso, reflecte sobre o quadro destas trocas e experiências terapêuticas e arquitectónicas, analisando e cartografando a genealogia de diversos modelos que, no contexto nacional e internacional, consolidaram a história deste processo, dos exemplos mais híbridos aos mais canónicos ou paradigmáticos.
     No entanto, subjacente à diversidade da abordagem, reconhece-se uma questão central, que é a de aferir se estas práticas projectuais exigiram aos arquitectos “uma consciência do exercício do projecto distinta, se [conduziram] à adopção de novas formas de composição, de traçado, de organização das ferramentas do projecto” (p. 25). Como o próprio autor recorda, não sendo este um território inédito, a originalidade da sua proposta reside talvez na tentativa de, através de protagonistas da “história anónima”, reavaliar o contributo destas práticas projectuais, em redor do que designa por “arquitectura antituberculose” para o “progresso da consciência teórica do projecto arquitectónico moderno” (p. 25).
     Na segunda obra, Os Fantasmas de Serralves, é de novo das relações e das condições da produção da arquitectura que se trata, centrando-se o texto no longo processo e na complexa teia de relações do projecto e da construção da Casa de Serralves, no Porto.
     Em grande medida graças ao precioso espólio a que acedeu e em que se apoia pormenorizadamente, André Tavares estabelece uma invulgar aproximação à compreensão de uma obra de arquitectura e das suas implicações, em resultado das interacções que a geram.
     Tal como no livro anterior, também neste desenvolve um extenso enquadramento do contexto cultural e disciplinar da época, desde logo através dos universos arquitectónicos e obras relevantes dos vários intervenientes no projecto.
     De Jacques-Émile Ruhlmann (1879-1933), Charles Siclis (1889-1942) e Jacques Gréber (1882-1962) a Marques da Silva (1869-1947), sob a direcção por vezes pouco clara do proprietário, Carlos Alberto Candal (1895-1968), André Tavares procura demonstrar que as soluções de projecto não eram um reflexo de uma visão global totalizante da obra, mas sim “o fruto de associações, combinações, faseamentos e evoluções maturadas ao longo do tempo” (p. 27).
     Desta diluição da figura esclarecida do “autor”, surge reforçado o papel do promotor, o qual representa aqui o modo como “as aspirações e ideias que flutuam na esfera social – independentes do debate e das aspirações da disciplina arquitectónica – se transferem e contaminam o campo disciplinar específico da arquitectura” (p. 28). Deste modo, André Tavares pretende “desassombrar […] a ideia da genialidade e de autor, que entra em conflito directo com a prática quotidiana da construção e da arquitectura, [relacionando-nos] de um modo mais tranquilo e consciente com o papel da sociedade na definição do ambiente construído e das qualidades da arquitectura que habitamos” (p. 30).
     Finalmente, no terceiro livro, através de uma pesquisa apoiada no “encontro aleatório e mais ou menos circunstancial, de tendência dispersiva com personagens da história que revelavam proximidades e discursos entrecruzados” (p. 22), o salto para o outro lado do oceano permitiu ao autor amplificar a verificação da intriga que o move. Através de um olhar lateral à grande história e teoria da arquitectura moderna Brasileira, procura compreender o papel que o betão armado desempenhou e as interferências que gerou no trabalho dos arquitectos.
     André Tavares envolve-se, uma vez mais, com a desmistificação do gesto disciplinar e iluminado, reconhecendo “o modo como se transformam e metamorfoseiam certas ideias em viagem e como elas são absorvidas e de novo transformadas no caldeirão do senso comum”.2
     Através de uma escrita fluida, apaixonada e frequentemente provocadora, movendo-se com agilidade entre o território da “alta cultura” e o da “baixa cultura”, André Tavares leva-nos a um outro lado da Arquitectura, onde a compreensão contextualizada no tempo e na cultura da época, o reconhecimento das interacções entre os vários intervenientes do processo do projecto e da obra permitem questionar algumas ideias feitas sobre o sentido eminentemente autónomo e disciplinar dos objectos arquitectónicos, levando-o à formulação de uma tese que perpassa subliminarmente pelas três obras de que aqui demos conta: a de que “a cultura colectiva é capaz de absorver a disciplina da arquitectura e conduzir as práticas da construção da cidade e da paisagem”.3

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1 Porto : FAUP, 2009. Dissertação de doutoramento.
2 Ibid., do abstract.
3 Ibid., p. 147

 


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